“A diferença entre sobreviver e viver com dignidade” (Opinião)

5 de Agosto, 2022 0 Por A Voz de Esmoriz

Ao longo da História, as pessoas com deficiência têm sido alvo de segregação e silenciamento, sempre com outras pessoas a falar, a fazer e a decidirem por si. Somos aquilo que, quem nos rodeia, quer que sejamos. Como seria de esperar, esta postura assistencialista reduz-nos às necessidades básicas e funciona com o intuito de garantir apenas a nossa sobrevivência, vedando-nos, muitas vezes, o acesso à cultura e ao meio artístico, por considerar esta área supérflua e secundária. Uma das implicações destas práticas reflete-se no desenvolvimento da nossa personalidade. Ora, se alguém decide constantemente por nós, não nos é dada a oportunidade de perceber os nossos gostos, expressar os nossos gostos, ou sequer ter gostos.

Gosto de pensar na cultura como uma janela que se abre para o infinito: permite-nos conhecer um conjunto infindável de mundos, experiências, realidades e perspetivas. Faz-nos rir, chorar, sonhar, principalmente, questionar. É o que nos distingue verdadeiramente das outras espécies, mas também nos diferencia enquanto comunidade e enquanto indivíduos. No fundo, tem o duplo papel de nos confrontar com o mundo exterior e interior, porque a nossa identidade se constrói também a par daquilo a que assistimos através da janela. Não sendo necessariamente politizada, a cultura é condição fundamental para o desenvolvimento de uma consciência política e de um posicionamento perante o mundo. Se, por um lado, nos tranquiliza e diverte, o conhecimento também pode inquietar, fazer refletir e mobilizar para a mudança. 

Além de ser um direito fundamental (que, por si só, já seria argumento suficiente), princípios como a liberdade, a autonomia e a autodeterminação só se atingem em contacto com produtos culturais e artísticos. Uma das dimensões que contribui para este desenvolvimento pleno é a representatividade. Ao longo da vida, crescemos sem quaisquer referências, não estamos presentes, nem à frente, e muito menos em cima do palco (leia-se ecrã, livro, microfone, etc.). Inconscientemente, construímos a nossa personalidade no seio de uma comunidade à qual sentimos não pertencer. Em diferentes circunstâncias, podemos duvidar da legitimidade da nossa existência com direitos, uma vez que não temos conhecimento de experiências semelhantes, ou de um passado de luta e resistência.

A assistência pessoal surge para terminar este ciclo e trazer um novo paradigma, sendo um serviço que apoia a pessoa na realização de todas as atividades do seu dia de acordo com as suas necessidades e, principalmente, vontades. O caráter personalizado que o define permite que, finalmente, possamos começar a conhecer-nos e a explorar preferências, como se passássemos de dentro do casulo para o estádio de liberdade que atinge a borboleta. No entanto, apesar de isto parecer muito elementar, ainda não está disponível a todas as pessoas que necessitam, pelo que a luta não pode parar, nem deixar ninguém para trás.

Embora não concorde com a hierarquização de necessidades que commumente se faz, a verdade é que as pessoas com deficiência ainda lutam por direitos humanos básicos, como o levantar de manhã, ou o poder escolher onde nos levantamos, quando e por quem. Sem estas condições garantidas, torna-se muito difícil falar de acesso a espaços culturais ou de conhecimento. Não porque sejam menos importantes, mas porque nem sequer são uma possibilidade quando existimos reduzidas às necessidades mais básicas. Na verdade, aquilo que a Ciência tem vindo a defender é que todas as áreas que compõem a vida em sociedade são igualmente cruciais para uma vivência plena: é a diferença entre sobreviver e viver com dignidade. Não podemos, nem queremos, esperar mais para atingir o nosso potencial máximo enquanto seres humanos por inteiro!


Catarina Vitorino

Psicóloga e ativista anticapacitista, feminista e interseccional