Iémen, o país que mergulhou no drama humanitário
16 de Outubro, 2020O Iémen é um país árabe que ocupa a extremidade sudoeste da Península da Arábia. Faz fronteira com a Arábia Saudita e Omã. A sua dimensão é de 527.968 km², por exemplo, cinco ou seis vezes superior ao território continental de Portugal. Ali vivem mais de 28 milhões de pessoas.
Em termos históricos, o Iémen foi durante a Idade Média governado por quatro dinastias islâmicas: os sulàyhidas, os aiúbidas, os rassoulidas e os tahíridas.
Por seu turno, os portugueses foram os primeiros europeus a abordarem estrategicamente o território, em inícios do século XVI, de forma a ambicionarem controlar o Mar Vermelho e acederem a uma aliança com o mítico reino cristão da Etiópia, onde muitos julgavam estar o lendário imperador Preste João. Por exemplo, Afonso de Albuquerque chegou a cercar, em 1513, a cidade portuária de Áden (uma das principais urbes iemenitas), embora sem qualquer êxito de conquista.
Mais tarde, e já na Época Contemporânea, o Iémen chegaria a ser uma colónia britânica, tendo conseguido a sua independência em 1967 e aderido a políticas de pendor comunista. Nessa segunda metade do século XX, já existia uma divisão clara entre o Norte e o Sul do Iémen, em termos de ideologia adoptada pelos seus governantes. Mas em 1990 deu-se o episódio simbólico da unificação entre a República Árabe do Iémen, apoiada pelos EUA e pela Arábia Saudita no norte, e a República Democrática Popular do Iémen (PDRY), apoiada pela URSS no sul. Tudo parecia estar resolvido, mas o contexto voltaria a mudar muito recentemente e a unidade daquele país voltaria a ser colocada em causa por reivindicações separatistas e actos rebeldes.
A Primavera Árabe (2010-2012) agitou todo o Médio Oriente com milhões de manifestantes a pedirem mais direitos sociais e valores democráticos, desafiando assim os regimes autoritários que subsistiam, na altura, em países do Mundo Muçulmano tais como o Egipto, a Líbia, a Tunísia, a Síria e também o próprio Iémen. Neste último país, em 2012, o então Presidente Ali Abdullah Saleh, ao ser alvo de enormes vagas de protestos, foi mesmo obrigado a renunciar ao cargo depois de mais de 30 anos de ditadura teocrática sem que se alcançassem progressos sociais e institucionais relevantes. Contudo, o seu sucessor, o vice-presidente Abdrabbuh Mansour Hadi, encarregado da transição política, não conseguiria impor-se diante dos ataques jihadistas, do aumento da miséria social e ainda das acções separatistas do Iémen do Sul. O país que já antes da guerra importava 90% dos seus produtos alimentares entraria agora em colapso e a guerra civil estalou violentamente nos anos seguintes. Além disso, as suas jazidas de petróleo e gás, apesar de assumirem um peso considerável na economia exportadora do Iémen, não são tão abundantes como noutros pontos do Golfo Árabe.
Entretanto, e neste contexto de agitação e instabilidade interna, o movimento Houthi, de inspiração xiita zaidita e apoiado pelo anterior presidente autoritário Ali Abdullah Saleh, encabeçaria uma rebelião contra o novo presidente no Norte do Iémen entre 2014-2015, acabando por tomar mesmo a capital Sanaá e efectuando um golpe de estado. O presidente Hadi teve mesmo que se exilar na Arábia Saudita, embora ainda controle alguns territórios e tribos influentes no país, sobretudo na zona sul, mas nem aí haveria paz visto que os movimentos separatistas (aqueles que reivindicam um estatuto independente para o Iémen do Sul) aproveitaram para se apoderar das instituições estatais e entrariam igualmente em força no conflito.
O mapa do território mudou e a fragmentação política e militar tornou-se numa realidade. Assim sendo, os houthis (clã poderoso e de vocação teocrática xiita zaidita) controlam o norte do país e são apoiados pelo Irão e pela organização do Hezbollah; por sua vez, os movimentos separatistas ocupam partes importantes do sul (nomeadamente as cidades portuárias de Áden e Mukalla e exigem a independência do “Iémen do Sul”), embora também existam ali territórios leais ao presidente exilado Hadi, o qual continua a ser apoiado pela Arábia Saudita e por uma coligação de países sunitas. No meio de toda esta amálgama explosiva, temos ainda a al-Qaeda que também controla algumas terras e que, de acordo com o Governo dos Estados Unidos, é o ramo mais perigoso da organização fundada por Bin Laden a operar, neste momento, no mundo.
É essencial mencionar que os países envolvidos ao conflito têm sido uma parte activa no mesmo, apoiando e até mesmo viabilizando, directa ou indirectamente, ataques militares, num território que parece ter caído na anarquia. É o caso dos iranianos que apoiam os houthis devido à sua simbiose de pendor xiita. Todavia, os sauditas, de orientação essencialmente sunita, temem que o Iémen seja uma pedra no sapato na fronteira do país, e por isso, apoiam o presidente Hadi e lutam contra os houthis.
De acordo com a ONU, citada pela BBC e pela Shifter, já morreram mais de 7 mil pessoas devido ao conflito militar, contudo este balanço poderá pecar por ser bastante irrealista. O Projecto de Localização de Conflitos Armados e Dados de Eventos (ACLED) avança com uma estatística mais “negra”, alegando que já poderão ter ocorrido mais de 100 mil mortes na guerra civil do Iémen. Ao todo, perto de 4 milhões de pessoas tiveram que abandonar as suas casas e procurar refúgio numa zona mais resguardada do território ou até num país estrangeiro.
A ONU garante que 24 milhões de iemenitas (mais de 80% da população do país) necessitam de ajuda humanitária porque vivem na miséria total, atravessando sérias dificuldades e não dispondo de qualquer meio de subsistência condigno. Cerca de 7,4 milhões de iemenitas não sabem sequer de onde vem a sua próxima refeição. Segundo esta alta entidade internacional, as crianças iemenitas crescem cada vez mais vulneráveis e sofrem com a escassez de comida e com a falta de educação que lhes rouba os horizontes do futuro. De acordo com dados estatísticos, cerca de 360 mil crianças com menos de 5 anos sofrem de má nutrição aguda e 30 mil delas morrem por falta de acesso a cuidados de saúde primários. Uma estatística da UNICEF aponta que, no Iémen, morre uma criança a cada dez minutos. Os serviços públicos do país foram destruídos, e metade das unidades de saúde deixaram de funcionar. Em média, existe um médico por mil habitantes e a maioria dos equipamentos que existem nos “hospitais resistentes” já estão obsoletos, e como se não bastasse, a maior parte dos profissionais de saúde já não recebe salário há dois anos.
O acesso a água potável tornou-se num grande desafio e a falta de saneamento adequado tem vindo a contribuir para o surgimento de sucessivos surtos de doenças e epidemias. Muitos habitantes do Iémen têm vindo, por exemplo, a morrer de cólera, dengue e malária. Relativamente às infecções por COVID-19, não há um número sequer que possa ser adiantado porque não há meios logísticos no país nem organização competente para que seja feito um balanço credível. No entanto, o vírus já está presente e a causar estragos na sombra, aproveitando-se da vulnerabilidade do sistema imunológico de muitos iemenitas.
Além de todas estas contrariedades, encontramos ainda lugar para a inflação meteórica do custo de vida, e de acordo com a ONU, “os preços dos combustíveis subiram 200%. afectando os sectores da agricultura, o abastecimento de água, os transportes, a electricidade, a saúde e o saneamento”. Por seu turno, os direitos humanos têm vindo a ser recorrentemente violados por ambas as partes do conflito: crimes bárbaros contra civis têm sido cometidos quer pela coligação regional da Arábia Saudita, quer pelos rebeldes houthis.
O tráfico de armas na região alcança igualmente uma expressão assustadora, e o Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas já deixou o aviso à comunidade internacional de que os “Estados podem ser responsabilizados pela ajuda ou assistência que prestam para o cometimento de violações do direito internacional se forem cumpridas as condições de cumplicidade”. Em suma, trata-se de um claro apelo para que os países não alimentem o drama desta guerra, não cedendo armamento que venha a ser utilizado por quem não respeita as vidas dos inocentes e indefesos. As Nações Unidas, representadas no terreno pela UNICEF e pelo Programa Mundial de Alimentos, têm procurado abastecer, na medida do possível, as populações através do envio de alimentos e medicamentos, contudo a ajuda humanitária é impedida de entrar em vários pontos do conflito. A entidade liderada pelo secretário-geral português António Guterres tem ajudado a acordar alguns cessares-fogos, embora estes sejam frágeis e não permitam, pelo menos, para já, uma paz duradoura.
De acordo com o Jornal Le Monde, já houve recentemente uma maior aproximação diplomática entre o Governo do Presidente exilado Hadi e as forças separatistas do sul, contudo o conflito com os houthis a norte parece estar longe do fim.
O Iémen nunca foi verdadeiramente um país de sonhos idílicos, e antes de entrar em guerra, era já o país mais pobre do Golfo Pérsico. Durante séculos, viveu de uma agricultura incipiente até porque a escassez de água, a erosão do solo e o desmatamento não permitiram o seu desenvolvimento até outros níveis. A pesca deveria ter sido mais potenciada no Mar Vermelho e no Golfo de Áden, mas o aproveitamento dos recursos marítimos tem sido feito, de forma individual, pelos pescadores, os quais recorrem a barcos pequenos e a meios de captura piscícola rudimentares.
Por outro lado, o Iémen nunca soube gerar fortunas através da sua produção de óleo e gás, sendo que entretanto, algumas refinarias e jazidas já foram destruídas pela Guerra Civil.
O Iémen vive um drama, ou melhor dizendo, um Inferno sem fim.
No entanto, o país que foi o berço de algumas aventuras lendárias que figuram nos contos da épica colectânea medieval das “Mil e Uma Noites”, não terá outra hipótese senão enfrentar o seu passado. Na verdade, os iemenitas precisam de um novo nascer-do-sol com dignidade, esperança e harmonia. Como é evidente, devem ser servidos por um sistema menos corrupto e mais independente face à ingerência de países estrangeiros. Além disso, a própria Humanidade não pode, na sua “consciência colectiva”, continuar a ignorar a crise humanitária que se abateu sobre o Iémen.
O poeta brasileiro Mário Quintana (1906-1994) já escrevia: “Cego é aquele que não vê seu próximo morrer de frio, de fome, de miséria. Surdo é aquele que não tem tempo de ouvir um desabafo de um amigo, ou o apelo de um irmão“.
Principais Fontes: Página das Nações Unidas – Centro Regional de Informação para a Europa Ocidental (Versão Portuguesa), UNICEF, Shifter-Sapo (Reportagem de Gabriel Ribeiro), CNN, BBC, Jornal Le Monde.
Foto de destaque da Reportagem (na capa): Vista sobre a capital Sanaá durante o conflito. Créditos: Gabriel Chaim (também presente no site da CNN).